Do lixo para o estúdio... A saga de transformar lixo em instrumentos musicais!

Do lixo para o estúdio... A saga de transformar lixo em instrumentos musicais!
Por Jônatas Kerr de Oliveira

Desde que começamos a gravar o CD dos Ovelhitos, percebi que a música "No meio dos bichos" precisava de um banjo.
De primeira tentamos um banjo digital. Tentamos vários arquivos MIDI com várias formas de tocar, vários Instrumentos virtuais (VSTi's), porém sempre soava falso.
Tentamos conversar com várias pessoas que tinham banjo ou tocavam banjo, porém nenhuma delas respondeu.
Foi então que comecei a ler sobre o instrumento e percebi que não era tão difícil de constriur um, e que a parte mais difícil seria o sistema de afinação. Eu até poderia usar tarrachas compradas, mas resolvi que queria construir tudo do zero.

O LIXOLÃO
Um dia, andando na UFSCar, vi um pedaço de caibro jogado na sargeta. Já estava torto e começando a apodrecer, mas foi o suficiente para eu fazer um primeiro teste de um sistema de afinação por alavanca:
Um parafuso aperta a alavanca que estica a corda, e assim dá a afinação.
Esse primeiro "Instrumento" eu batizei de lixolão.
O lixolão usava 5 cordas em uma peça única. A afinação era muito precisa, mas o curso era muito pequeno, ou seja: para conseguir usar esse sistema de afinação em um instrumento de verdade, eu precisaria esticar bem a corda antes de começar a usar o afinador, pois caso contrário, correria o risco de chegar ao fim do curso do parafuso sem chegar no tom esperado para aquela corda.
Outro problema com o arranjo que fiz foi que o espaço ficou muito apertado para os 5 parafusos, então se um dia isso fosse implementado em um instrumento de verdade, ou as peças seriam bem menores, ou talvez cada alavanca deveria ter o seu próprio eixo para que elas fossem espaçadas na vertical.
Esse sistema seria útil como um ajuste, como a micro-afinação nas guitarras com ponte móvel.
Lendo um pouco mais, pensei em construir um sistema de cravelhas, que seriam como que tarrachas de madeira, como as que eram utilizadas antigamente.
LIXO PRECIOSO!
Outro dia, andando novamente na UFSCar, me deparei com uma pilha de lixo ao relento: lousas apodrecendo na chuva, móveis de escritório antigos também apodrecendo. Porém algo me chamou a atenção: existiam algumas táboas específicas que não estavam podres, nem envergadas, mesmo estando na chuva e sol há muito tempo.
Eram gavetas antigas. A frente era de aglomerado, que já estava dissolvendo ao relento, porém o fundo e as laterais eram muito lisas e duras. sem esforço o aglomerado se desfez e peguei as táboas de madeira. Levei para um amigo meu que entende de madeira e para minha surpresa ele afirmou: "isso é Imbúia, madeira nobre! Antigamente as laterais das gavetas eram feitas com madeiras muito duras, já que não tinham os trilhos de ferro. Era madeira correndo contra madeira."
Com essa boa notícia, peguei minhas táboas de Imbúia e segui um projeto de um Mountain Banjo:

http://www.bluestemstrings.com/pageWineboxBanjo1.html

02-Cortando as táboas de Imbúia.
O que fiz, foi basicamente imprimir o projeto do PDF, colar as folhas que foram impressas e usar como guia para riscar as madeiras.

Após isso, cortei as madeiras com uma serra tico-tico, e após passar muita cola de madeira, juntei as duas táboas e apertei muito com grampos de metal. Para não marcar as madeiras, coloquei duas táboas em cima e embaixo das madeiras que eu iria utilizar. Assim a pressão é distribuída mais uniformemente na madeira que iria utilizar e evitamos marcas na madeira do braço do banjo.
Uma parte importante é a de arredondar o braço na parte de trás. Para isso eu teria algumas opções: a melhor seria ter uma topia com uma lâmina no formato do braço. seria só passar uma vez e pronto! Mas não tenho nem a topia nem a lâmina. Sobraram as opções de usar a grosa ou uma lixadeira. Consegui emprestada uma lixadeira de disco. Com a lixadeira o processo todo demorou aproximadamente 40 minutos. Como o disco gira muito rápido, em alguns lugares ficava marcado de queimado. Vendo o queimado, eu gostei da cara que ele deu, e resolvi assumir como identidade do banjo! A partir daí, peguei a lixadeira e fui "queimando" vários pedaços do banjo para dar um ar mais rústico pra ele.
Com o braço cortado e arredondado, o próximo pasos seria criar o sistema de afinação. Essa foi a parte mais complicada de todo o projeto:
Para as cravelhas funcionarem, elas têm que ter um formato Cônico, e serem encaixadas em furos cônicos. Primeiramente tentei tornear as cravelhas. Foi um fiasco. Primeiramente porquê tentei construir o torno para então tentar tornear. O torno se quebrou na primeira peça, e percebi que o resultado que eu estava obtendo estava longe do esperado.
Lendo um pouco sobre o assunto, encontrei a solução: fazer furos comuns com a furadeira, e construir um alargador de furos. Um metal resistente que consiga ir comendo a madeira no formato escolhido.

Construir o alargador de furo em si já foi um desafio, já que escolhi um metal muito grosso. O meu cálculo de espessura para as cravelhas (6mm na ponta e 8mm na base) foi feito baseado em cravelhas padrão internacional. Cortei o ferro na largura desejada, porém quando me dei conta, esqueci de levar em consideração a altura do ferro (que era um ferro grosso para evitar que ele se torcesse ou quebrasse com o uso). Como o ferro era grosso, quando eu girava, a diagonal era muito maior do que o que eu tinha calculado, então tive que cortar novamente o ferro para atingir um diâmetro de furo mais próximo do esperado.
Com o alargador, basta ir forçando ele e girando no buraco que o furo vai ganhando o formato cônico. O interessante do alargador é que pela pressão e pelo atrito, a própria madeira da região que tem contato com o alargador acaba ficando mais densa, e mais dura que o restante, o que ajuda a segurar ainda mais as cravelhas.

Então cortei várias cravelhas, já contando com uma margem de erro bem grande. Essas cravelhas foram suficientes não apenas para fazer o banjo, como também uma guitarrinha que fiz depois.
Na tico-tico eu fiz apenas o corte mais grosseiro, dando um formato geral, aí o restante é ajustado com outras ferramentas.

Esse é o grande segredo das cravelhas: ter o apontador de cravelhas. É como um apontador de lápis, mas que aponta no formato que você deseja. Tendo um furo no formato desejado, basta colocar uma lâmina, que se torna um apontador.
A lâmina eu peguei de uma faca de cozinha. Foi muuuuuito difícil cortar a faca. Não sei se existe alguma ferramenta específica, mas fui na serrinha de cortar ferro, e demorou bastante, mas consegui. Como não é possível furar uma lâmina de faca com as brocas convencionais (pelo menos não as que eu tenho por aqui), resolvi prender a lâmina com um dos grampos que usei anteriormente para colar a madeira. Com um toquinho de calço, ajustei o ângulo e funcionou perfeitamente!
Basta lembrar que para conseguir apontar, a peça tem que estar levemente arredondada, para entrar no começo do buraco do apontador. Para isso, peguei uma faquinha e fui tirando lascas das cravelhas de ponta quadrada que eu tinha cortado. É mais rápido e fácil do que parece!
Com as cravelhas levemente arredondadas, basta ir girando cuidadosamente no apontador. Se a cravelha travar, recue um pouco e vá com mais calma, avançando menos. Se você forçar nesses momentos, existe a possibilidade de perder a peça, já que a cravelha pode rachar ao meio.
Ao chegar ao final, pode-se lixar levemente para alisar um pouco as peças, mas cuidado para não perder o formato original! É importante que as peças encaixem perfeitamente, e tenham a maior área de contato possível. Se você lixar demais um dos lados, a peça pode encostar apenas em um ponto, e a afinação vai ficar se perdendo muito facilmente.

O corpo do banjo é basicamente um pandeiro. Os antigos usavam cabaças, os modernos usam algo semelhante a uma caixa de bateria, existem banjos feitos de lata de biscoito, lata de óleo, etc, mas em suma o que precisamos é de uma área tensionada onde a ponte ficará apoiada. O som do banjo é bastante característico pois ao tocar uma corda, a ponte vibra, e isso vibra a pele onde a ponte está apoiada. Por isso que os sintetizadores em geral não conseguem imitar tão bem o som de um banjo. uma nota interfere na outra, e existe uma vibração orgânica que o digital raramente consegue reproduzir.
No meu caso peguei um pandeiro velho (se bobear, é mais velho que eu!), e pensei em colocar uma pele de animal.
Soltei a pele de plástico que veio naquele pandeiro velho, e cortei o plástico usando um estilete para aproveitar o anel de metal. 
Peguei a pele de animal de deixei de molho por umas 2 horas na água. Nesse processo a pele que estava seca e até meio dura fica mole, parecendo uma borracha. Vale lembrar que a pele molhada solta um odor não muito agradável, que no meu caso preencheu a casa por alguns dias até ela secar completamente.
Com a pele enxarcada e o anel, bastou colocar a pele no pandeiro, o anel por cima e apertar a afinação. Como sobrou bastante pele, resolvi puxar a pele até a parte de baixo e cobrir as laterais do pandeiro, que eram muito feitas. Isso deu um ar mais rústico ao projeto!
Dei uma esticada com a pele ainda húmida. Nos primeiros dias a pele tem um som meio chocho, sem graça, meio morto. Mas conforme ela vai secando, ela ganha o seu som definitivo (e para de cheirar mal!).

Marcações
Como eu queria deixar o projeto bonitinho também, resolvi colocar as marcações no braço. Após pensar muito em que material usar, resolvi cortar os encaixes das peças de lego (ok, não eram legos de verdade... eram os chinglings!). Cortei os encaixes do lego com um estilete quente (ia esquentando ele no fogo do fogão). Vale adiantar, que quem quiser fazer isso em casa, deve tomar cuidado para ir cortando pelas laterais uniformemente, e não cortar de uma só vez em um único movimento. Se cortar de uma vez, com o estilete quente, a peça cortada fica grudada no estilete, e vai derretendo, perdendo o formato arredondado, que é o principal motivo de estarmos usando esse material!
Com as peças cortadas, fiz o furo na escala no tamanho exato das peças, lixei elas para caberem certinho nos buracos, e aí usei a cola TekBond (é tipo uma genérica do super bonder, mas mais forte, mais líquida e vem em frascos maiores). Um segredo interessante do uso da TekBond com a madeira é de pingar a cola, retirar rapidamente o excesso com um papel higiênico, e em seguida já lixar com uma lixa bem fina sobre a cola fresca. Em muitos casos, as emendas praticamente somem, pois o pó da madeira lixada já preenche os vãos que ficarem, e ajudam absorvem o excesso de cola.

trastes
Antes de instalar os trastes já dei uma lixada geral no banjo. Para isso, usei as lixas de 50, 80 e 150, nessa ordem. É importante sempre ir lixando da lixa mais grossa que você tiver para a mais fina. Isso garante um bom acabamento!

Uma etapa importante é a de colocar os trastes. Comprei os trastes mais baratos que pude encontrar - trastes de latão por R$4,00 o pedaço com aproximadamente meio metro. Para um banjo de 22 trastes, usei pouco mais de 2 desses pedaços.
Não encontrei no mercado uma serra mais fina, então fiz os cortes na escala usando a própria serra de cortar ferro. Os cortes ficaram um pouco mais largos que o esperado, então fui encaixando os trastes e colando eles. Para facilitar, resolvi cortar os trastes no tamanho certo, lixar os cantos para evitar acidentes na hora de instalar (cortei o dedo no primeiro traste que fui instalar e já percebi a importância de fazer isso! hehehe), e só então fui instalar as peças. Para instalar os trastes, eu passei a TekBond no traste, encaixei o traste no corte da escala, então colocava um pedaço de madeira sobre o traste e dava algumas marteladas nessa madeira, para garantir que a pressão fosse uniforme sobre os trastes e não danificasse os mesmos. Com as pancadas um pouco da cola começava a vazar na escala, então foi importante ter um pouco de papel higiênico para ir limpando o que vazava. Em alguns casos foi preciso lixar a região onde a cola vazou.
Com todos os trastes instalados, é importante nivelar eles, ou segundo alguns, retificar os trastes.
Como funciona? você pega uma pedra que é certeza que é bem reta, coloca uma lixa e vai passando no braço inteiro. No começo você vai ver que existem alguns pedaços que estão amassados, outros mais altos. A idéia de retificar os trastes é de deixar todos com a mesma altura. Então se tiver só um pedacinho de um traste sem lixar ainda, você vai lixar todos os trastes até todos atingirem a altura daquele ponto que não tinha sido lixado.
O sentido da lixa deve ser sempre o mesmo, acompanhando o sentido do braço.
No meu caso, usei um pedaço de mármore que alguém jogou fora, provavelmente de uma soleira quebrada. Fui trocando a lixa até chegar na lixa mais fina.
Quando todos os trastes estão nivelados, pego um pedaço de bombril e vou ariando os trastes no sentido contrário às marcas de lixa. A idéia de usar o bombril é de tirar os riscos que ficaram da lixa e também dar um brilho extra.
Vi pessoas que passam uma cera para proteger os trastes quando terminam o serviço. Eu não fiz isso!
No "rabinho" do banjo fiz furos angulados para passar as cordas. Assim não força tanto a madeira, e dá um toque estiloso para o projeto.

Pronto!
depois disso tudo, esse é o resultado.

E esse banjo foi usado para tocar a música "No meio dos bichos", do CD "Ovelhitos Vol.1"


Outro dia, andando na rua, encontrei outra gaveta jogada na calçada. Peguei, levei pra casa e fiz uma guitarrinha pra minha filha aprender a tocar.
Com uma das táboas fiz o braço. Só cortei ele e quebrei as quinas com uma grosa, arredondando o braço. Ficou até melhor que o resultado da lixadeira do banjo, mas deu bem mais trabalho.
Aí para o corpo da guitarrinha, eu queria fazer ela semi-acústica, como um violão mais fechado. Vi essa idéia de cortar a lateral do corpo, e já usei uma das outras táboas da mesma gaveta. Fiz o desenho no papel, colei e cortei com a serra tico-tico. Confesso que ficaram um pouco grossas as peças da lateral, mas no meu caso é bom para evitar muito barulho enquanto minha filha aprende a tocar! hehehe
Já nas peças da lateral, já colei o fundo antes de encaixar na peça central.
Para o tampo e fundo do corpo, usei madeiras de caixas de frutas. Peguei dois tipos de madeira: uma mais rústica e mais grossa, típica daquelas caixas de feira, e outra que era um compensado de uns 2mm de espessura.
O compensado eram folhas finas com um texto escrito de um lado e a madeira crua do outro lado. Juntei duas folhas desse compensado, passei cola na lateral, juntei com uns elásticos e coloquei um peso em cima (um extintor de incêncio) de uma táboa para garantir que ficaria reto. Ficou perfeito. As duas táboas ficaram muito bem emendadas e viraram uma prancha mais larga que acabei usando para o tampo da guitarra.
para prender as laterais na táboa central, fiz furos nas duas peças e coloquei cavilhas. Colei as peças e prendi com um grampo e alguns elásticos para garantir que ficaria bem justo.
Cortei o tampo com com uma tesoura grossa para dar o formato geral, e com um estilete para fazer os ajustes finos. Antes de colar o tampo no corpo, tampei os buracos que sobraram com pó de serragem e cola, e verifiquei os lugares onde seria preciso reforçar o tampo para evitar que a pressão das cordas quebrasse a peça.
Colei o tampo e para garantir que ficaria bem justo, pequei pedaços de corda e fui apertando o tampo inteiro contra o corpo.

Como o tampo e o fundo eram de Pinus, uma madeira branca e feia, resolvi tingir a madeira para dar uma cara diferente. Para tal, resolvi usar um corante natural: ferrugem.
Peguei um pouco de bombril e deixei algumas horas de molho no vinagre com água. Em pouco tempo vai soltando um líquido marrom. Peguei esse bombril e fui esfregando na madeira. Propositalmente, deixei fiapos do bomril sobre a madeira. Quando secou, a madeira inteira ganhou uma cor marrom, e os pontos onde ficaram fiapos ficaram mais escuros, dando um aspecto rajado para a madeira, que me agradou bastante.

Para a guitarrinha, eu resolvi um dos principais problemas do banjo: no banjo eu fiz as cravelhas na face da frente do instrumento. Com isso, existe um ângulo muito pequeno entre o rastilho (nut) e a corda. No meu caso, eu ainda fiz o furo meio angulado, na direção da tensão da corda, o que facilita não só desfinar, mas em alguns casos, até mesmo que a cravelha pule para fora do buraco se o instrumento sofrer algum tranco.
Como eu resolvi esse problema? de uma forma muito simples: o braço da guitarrinha é feito de uma única táboa, e fiz furos na mão da guitarra para passar as cordas para a parte de trás. Assim, a corda faz um "S" dentro da madeira, que ajuda a segurar a afinação, além de gastar menos madeira, e facilitar na produção! Foi um acerto e tanto!

Esse é o resultado final da guitarrinha!

Este é o fundo da guitarra. Note que escolhi uma madeira rajada, para dar um ar mais rústico.
outra imagem da guitarra, mostrando o detalhe do furo de onde saem as cordas.
A guitarrinha e o banjo - Dois instrumentos que vieram literalmente do lixo!

É isso, esse foi o processo pelo qual passei para construir estes dois instrumentos. E o que podemos aprender com tudo isso?
Podemos ver que tudo tem seu valor... mesmo que você esteja se sentindo um lixo, você tem potencial para brilhar e ser um instrumento nas mãos de Deus! Se você ver alguma pessoa na rua, não olhe apenas com o olhar humano. Peça para Deus lhe mostrar o potencial daquela pessoa. Deus tem um plano para todos. Talvez só precise você olhar para o lixo de forma diferente, e Deus vai fazer coisas maravilhosas na sua vida e na vida dos outros!

Jônatas Kerr de Oliveira

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